terça-feira, 18 de março de 2014

Carta de despedida

Vô,

Eu queria ter lhe dito essas palavras enquanto era tempo de ver sua reação. Queria ter tido a coragem de ter te dado um abraço mais apertado na sua festa de 80 anos, que parece que foi ontem, e agora me dá um nó na garganta o fato de não ter conseguido lhe dizer que, apesar de não ser meu avô de sangue, o senhor foi o avô que eu tive.

Essa sensação de despedida me trouxe à memória, durante toda a última noite, lembranças que já haviam sido deixadas lá atrás. Como as vezes em que eu e Loreny chegávamos à sua casa, na Fazenda Vitali, logo após o almoço, e tínhamos que falar baixo porque o senhor estava tirando "o soninho da tarde". Enquanto isso, enchíamos a boca com os bolos e tortas que a vovó Faninha fazia na cozinha.

O senhor nunca foi de muitas palavras. Era um avô caladão, sistemático, mas tinha um olhar doce e acolhedor. Quantas vezes descemos a rampa do CEFETES, no auge de nossa adolescência, e víamos o senhor parado, ao lado do carro, esperando para nos levar em casa? E, por respeito ao senhor, tentávamos não falar alto e controlávamos a euforia no trajeto. O senhor só olhava pelo retrovisor e isso bastava.

Meu coração fica acelerado quando lembro de uma das vezes em que mais me senti protegido - ou seria melhor dizer "defendido"? - na vida. Saíamos eu, Loreny e Valeska da escola, e um grupo de veteranos (se não me falha a memória) disse alguma gracinha sobre nós. Não cheguei a ouvir qual foi, mas o senhor partiu para cima deles como um leão defendendo a ninhada, pôs o dedo em riste e deu um esporro que os deixou calados. Valeska ficou vermelha, Loreny calada, e eu acho que meus olhos por pouco não saltaram do rosto, de tão arregalado que fiquei.

No seu último aniversário eu estava lá. O "neto postiço", como dizem alguns. E, é verdade, acho que virei seu neto mesmo. Seu e da "vovó Farofa". Me apeguei aos seus filhos (ganhei um bocado de tios, hein?!) e tenho por suas netas especial carinho. Valeska, o senhor sabia, era, é, e sempre será minha irmã de alma e de coração.

Neste momento, vô, o senhor descansa. A batalha foi curta, e eu tenho certeza que doeu muito. Mas ontem, quando o vi pela última vez, o senhor era o mesmo vovô de sempre. Mesmo na cama, com toda dificuldade, dizia que estava "tudo bem", e parecia não querer incomodar as pessoas que o senhor tanto amava.

Eu não tive coragem de ir abraçá-lo. Nem sequer me anunciei ali no quarto. Preferi ficar quietinho, no canto, rezando Ave-Marias e Salve-Rainhas. Sabe, vô, eu tenho especial carinho por Nossa Senhora. E tenho certeza que ela, que é nossa Mamãe do Céu, hoje acolhe o senhor com especial alegria no céu. O senhor cumpriu sua missão aqui. Ensinou valores aos seus filhos, aos netos, e até aos "agregados". E valores, e amor, não se ensina com muitas palavras: se ensina com exemplo. 

Obrigado, vovô Aurecyl Dalla Bernardina, por ter sido meu avô. O avô que eu pude conhecer. 

Sentirei saudades.


domingo, 9 de fevereiro de 2014

Reencontre-se

Quem nunca remexeu em caixas antigas, com coisas guardadas, dedos de poeira acumulados, não sabe o que é reencontrar-se com o que já foi. Cartas que já foram lidas, cujas folhas amarelaram com o tempo, trazem de volta letras, declarações e sentimentos que outrora nos modificaram. Brinquedos, objetos, lembrancinhas de festas de décadas atrás nos transportam, de imediato, para tudo aquilo que já se viveu. Sorrisos ressorriem, emoções se renovam. E ninguém deixa de ser o que é por isso.

Experimentar esse reencontro é algo que renova a alma. Pode parecer estranho, visto que renovação não combina com quinquilharia, mas é por aí. O velho uniforme da escola, assinado por colegas do Ensino Fundamental, mesmo que cheire a guardado e tenha manchas por todos os lados pelo desuso acumulado, é capaz de te dar um cutucão na memória e te fazer pensar em quantas vezes correu pela quadra, jogando futebol (não era meu caso, tá?!), em quantas vezes "ficou de mal" com fulaninho e fulaninha só porque não pôde usar a cartolina ou a "caneta Pilot" no trabalho em grupo. Mais que isso: te leva a uma viagem que inclui apelidos, brincadeiras, cheiros e sabores do lanche da cantina.

O mesmo vale para álbuns de fotografia. O menino gordinho e bochechudo que nem se parece com você, hoje paranoico por dietas, ou a garotinha de cabelos cacheados e dentes protuberantes, cuja imagem se distancia da mulher de cabelos lisos e sorriso branco que hoje existe, são parte dessa história. A tia engraçada que está na foto, hoje não está mais na família. O tio que era magro e hoje é obeso. As fotos do Natal, farto, cheio de doces e crianças de boca cheia. Lembra disso? Vai dizer que você nunca roubou um brigadeiro, um cajuzinho, um bombom Serenata, às escondidas, pelo simples prazer de estar ferindo a regra?

Reencontrar o passado é gostoso. Faz lembrar a época em que estojos escolares tinham botões e fecho com ímã, e eram vendidos como "o futuro"; as borrachas eram cheirosas, as lapiseiras "Charmant" eram como relíquias, ir à casa do colega ver as duas fitas de Titanic lhe obrigava até a pôr roupa mais bonita - afinal, era um evento! - e o dia em que o parque chegava para a festa da cidade lhe fazia ter taquicardia de emoção. 

Ah, quantas pessoas nós já fomos um dia, não é?! Reconhecer essas fases, pôr frente à frente o ontem e o hoje é um exercício de saudosismo, mas também de gratidão, por tudo aquilo que nos ajudou a chegar até o presente. Ainda não experimentou isso? Experimente. Se não tiver velharias guardadas sobre o guarda-roupa, comece pelas cicatrizes na pele, pelas manchinhas de sol, pela unha que ficou torta depois de uma topada na quina do sofá. Uma coisa, eu garanto: depois desse encontro, você volta ao presente com a alma renovada. Tudo a ver com o domingo.

quinta-feira, 6 de fevereiro de 2014

Sobre palavras e silêncios

Escrevo melhor do que falo, e não costumo esconder essa fraqueza. A sonoridade das vogais, somadas às consoantes, me trava a língua, muitas vezes, quando o coração e a emoção querem falar mais depressa do que a dicção permite. Aprendi a explodir meus sentimentos em letras escritas, arredondadas, no tempo em que se usava fichário para assistir às aulas. Não entendendo nada do que dizia o professor de Matemática, afundava-me em poemas, rimas e ficções para expressar o que não dizia.

Não, escrever não é fácil. Escrever sobre sentimentos, muito menos. Porque o que quem escreve sente, nem sempre corresponde ao que sente quem lê. Amor, aqui escrito, pode despertar rancor quando lido. Sorte nas palavras pode ser má-sorte nas discussões vindouras, tal qual a falta de uma vírgula pode mudar todo o sentido de uma frase. E na correria das teclas, na profusão de sentimentos, vírgulas se perdem, elementos se misturam.

Escrevo melhor do que falo, e muitas vezes falo sem pensar. Como se diz por aí, "Quem nunca?". Mas quando percebo, já foi. O apagar da palavra sonora é muito mais difícil do que apertar o delete no teclado. Oras, dirão alguns, então por que não pensa antes de falar? Porque, para mim, a vida não é ensaiada. Nunca sei qual será a réplica, a tréplica, e estou a todo momento como em defensiva. Dos males, o menor, aprendi a pedir perdão (tardiamente, admito!) quando erro. E se tem uma coisa que eu gosto, gosto muito, é de dialogar. Mesmo quando silencio.

Silenciar não é fácil. Quantas vezes as palavras vêm à boca, os lábios se tensionam, e um suspiro faz tudo voltar goela abaixo? Não é fácil deixar de dizer o que se quer, do jeito que se quer, a hora que der vontade. Para quem está na casa dos 20 e poucos, isso é quase impossível. E, não duvidem: o tempo realmente é capaz de nos ensinar que nem sempre falar é a melhor alternativa.

Isso tudo não é uma defesa da hipocrisia, da falsidade, tampouco uma ode à apatia. Escrevo melhor do que falo, falo muito sem pensar, e venho pensando, cada vez mais, no poder que as palavras têm. Para o bem e para o mal. Escritas ou vocalizadas. Dizer algo, seja por qual meio for, é uma arma que todos nós podemos usar, e muitas vezes vejo que não sabemos (estou me incluindo nesse grupo).

Num mundo de tagarelices como é o nosso, talvez um dos melhores caminhos seja a observação. Olhar ao redor e ver como há gente sofrendo, magoada, brigada, infeliz, por ter dito e ouvido o que não devia. É isso que queremos para nós? É a essa realidade onde relações são construídas e terminadas pelas redes sociais, com palavras, exclamações e desenhos exagerados, que estamos condenados?

Longe de mim querer imprimir manual de boa conduta. Aliás, sinto-me até "escravizado" pelo Facebook, pelo Twitter e pelo WhatsApp - logo, não sou o melhor dos modelos. Mas tenho uma meta para os próximos meses: ser mais "ao vivo". Permitir-me mais. Adotar menos gritos, menos briga comprada a troco de nada. Menos "preguiça do mundo", menos dedo apontado, menos rispidez. Vai ser difícil?! Vai. Mas troco isso por mais oportunidades de ver o pôr-do-Sol, mais dias sentado à beira da praia, mais vento no rosto, mais silêncio. Mais paz.