sábado, 25 de junho de 2011

Marcas de frenagem

Um passo adiante, e todo um caminho pode se tornar inviável. Sabe quando estamos numa estrada, não percebemos as placas e acabamos perdendo a via de retorno? Na vida também é assim. Corremos tanto, todos os dias, que às vezes ignoramos os sinais postos no caminho nos indicando a hora de parar, de acelerar, de ter atenção com as oscilações e curvas sinuosas.

Como se fôssemos carros (acho que vale a comparação), temos que ter parabrisas bem ajustados, para que a visão seja clara o suficiente adiante, e retrovisores na posição correta, para olhar para trás e ver por onde passamos, quem deixamos e, principalmente, quem está chegando mais perto, vindo ao nosso encontro. Afinal, não somos só nós quem estamos indo adiante, nessa loucura chamada tempo. Lá atrás também tem gente querendo chegar junto!

A estrada, em geral, não é fácil. Há barreiras difíceis de serem superadas, estradas pedregosas, pistas escorregadias. Em dias de céu astral nublado, verdadeiras tempestades de emoções por vezes nos atrapalham a seguir de cabeça erguida. Nesses casos, pelo que vejo, poucos são os que admitem uma paradinha "no acostamento" para esperar o tempo clarear. Vivemos nos cobrando velocidade, agilidade. Sinal vermelho: acabamos nos atropelando!

Custamos a trocar nossos pneus - leia-se sentimentos, raciocínios, maturidade emocional. Insistimos em seguir viagem desgastados, cansados após um dia inteiro de trabalho ou de uma grande crise pessoal. Queremos fazer as curvas em alta velocidade quando mal acabamos de sair das pistas de alta velocidade. Há, hoje em dia, uma eterna busca pela "próxima emoção". A próxima boca a ser beijada, o próximo desafio profissional, troféu seguinte a ser conquistados. Vamos para essas batalhas desalinhados - de corpo e alma!

ººº
Por quê tantas metáforas?, vocês hão de me questionar. Porque, meus caros leitores (e amigos), após muita quilometragem rodada acima dos 100km/h, tirei o feriado de Corpus Christ para fazer meu pit stop. Cercado da família, em Colatina, com crianças que eu amo, primas que trazem experiências e novos olhares, gente que me faz bem e me olha nos olhos.

Resolvi avaliar meu balanceamento, ajeitar meus retrovisores do espírito, os parabrisas da visão e, principalmente, dar uma arrumadinha nos pensamentos. Me desfiz do que parecia fora do lugar e ajustei, na alma e no coração, as peças novas que já vinha adicionando à velha lataria. Pronto, depois do feriado, posso voltar para a autoestrada e rodar mais um pouco. Com um pé no acelerador, e outro no freio.

Alguém quer uma carona?

quinta-feira, 23 de junho de 2011

Naninha faz falta

Ela deixou marcas tão fortes em mim, que talvez nem em 90 anos eu consiga apagá-las. Das mais simples, como o franzir da testa, às mais complexas, como a inexplicável sensação de estar sempre buscando o que está distante. Deixou-me um legado de lutas, vitórias, de dores e prazeres que, dia após dia, me fizeram ser quem sou hoje.

Falo, mais uma vez, da minha mãe. Mas hoje sinto uma coisa diferente, e não quero falar dela como minha mãe. Quero falar da Eliana pessoa, da "Naninha" da família. Cheia de ataques, de nuances, de mistérios. Dona de uma gargalhada rasgada e de um silêncio ensurdecedor - dois antônimos que a tornavam figura ímpar em meio à multidão.

Naninha era dessas pessoas pouco comuns. A ela, não bastava o óbvio, o simples. Tudo tinha motivo, e muitos desses motivos provavelmente nunca existiram. Ela os criava. Vinham de sua mentalidade ligeira as brigas homéricas que travava com os outros (e consigo própria). Batalhas inglórias, por tantas vezes sem um rival aparente. A vida virava um front, e nele, com unhas e dentes, ela se dedicava.

Com a Naninha, aprendi que cantar liberta aquele nó na garganta que fica após um sapo ser engolido. A música espanta a solidão, mas também aproxima sentimentos nem sempre gostosos. Explico: quem não sente a angústia de Fafá de Belém em "A volta", numa canção que narra - com Roberto Carlos - as desventuras de um amor bandido e mal revolvido? E a voz de Luís Miguel, em "La Barca", com seu casteliano arrastado, que põe o ouvinte em transe, num navio de partida? Melodias que embalaram minha infância.

A profunda vontade de acreditar que "tudo vai dar certo" veio dela. E sei, hoje, que ela nunca acreditou que esse certo realmente existiria. Vinha de dentro do coração dela essa eterna contradição, esse buscar-luz-no-fim-do-túnel mesmo - veja só! - quando não havia túnel algum a ser percorrido. Naninha nunca suportou o que era fácil demais.

Naninha não suportava a mediocridade. Condenada a bondade em demasia. Dizia rasgado o que pensava, mesmo sabendo que aquilo poderia lhe custar alguns dias de discussões com gente querida. Naninha sabia bradar aos quatro ventos sua alegria e, quando lhe parecia interessante, sabia se apresentar como a pessoa singular e extraordinária que era. Mas isso, sempre sob a luz da simplicidade.

Por fim, a busca pela iluminação. Os livros de Osho, a meditação. Alguns versículos bíblicos, mas não muitos. Nem mesmo o catolicismo ou o excesso de religiosidade lhe pareciam coisas boas. Naninha era ela mesma, e pronto. Quando havia alegria, era o próprio carnaval encarnado. Quando em sua alma surgia alguma nuvem cinza, era melhor que o mundo se preparasse, porque ela sabia fazer uma grande tempestade.

Entre altos e baixos, risos e lágrimas, declarações de amor e ódio, pude ser testemunha, por 24 anos e nove meses, de todas as facetas que um ser humano - de carne e osso, razão e emoção - sabe ser. É... eu vim desse turbilhão de emoções, e talvez isso sirva para que, daqui a alguns anos, eu possa me entender (e, quem sabe, me fazer entender). É... Naninha faz falta.

sexta-feira, 17 de junho de 2011

Cães famintos

Um cachorro lambia o asfalto, no meio da rua, numa manhã fria de outono. O vento era gelado, às vezes assoviava, e o pouco movimento denunciava que a vizinhança dormia. Um carro veio veloz - era um Chevette, ou um Monza; tanto faz - e, mesmo com o rupido rouco da buzina, o cão não se moveu. Manteve a avidez da língua sobre o asfalto, sorvendo restos de algum líquido leitoso derramado ali. Tinha fome. Quem sabe, frio.

Aquele pobre vira-latas muito provavelmente não tem nome, não tem dono, não tem vez. Um pote de ração lhe serviria como banquete. Água, só conhecia das poças à beira do caminho, após as chuvas torrenciais que inundavam a ilha vez ou outra. Lhe fora negado, desde a ninhada, o direito a ter irmãos, afinal, deles nem se lembrava.

Um cachorro. O asfalto. Sede e fome onde só há concreto, vento frio e transeuntes que não o veem. Este pobre canino pode ser eu. Pode ser centenas de Joões, Joanas, Mários e Marianas que estão por aí, perambulando pela cidade, com fome e sede. Fome de comida, fome de amor. Sede de atenção, de cuidado, do mínimo de dignidade.

Cachorros, aos montes, nas ruas. Sem coleiras, sem casinha para dormir. A eles, somente restos do que ficou na estrada, mesmo que não tenha sabor. Um fio de esperança, lambidas sobre o que um dia pode ter sido saboroso. Pessoas e cães ensurdecidos pelas roucas buzinas nas avenidas e pelos gritos impiedosos de quem está sempre com pressa para o trabalho, sem tempo de olhar quem está ao lado. Mesmo que seja apenas um animal.

terça-feira, 14 de junho de 2011

Rapidinhas

Três pessoas entram no ônibus. Duas são bonitas; uma, horrível. Adivinha quem senta ao seu lado?!

A viagem dos seus sonhos (ou aquela roupa que você deseja) entra em promoção. Seu cartão de crédito está bloqueado.

Você malha um ano para impressionar sua ex-namorada com sua boa forma e disposição. Ela se casa com um gordo.

Sua mãe comunica à família que, anos após ficar viúva, arranjou um namorado. Ele tem 30 anos, ela, 69. Pior: ele te pegou na balada na noite anterior.

A depilação não está em dia e a langerie está folgada. Ele chega de surpresa, cheio de amor para dar.

Você resolveu cortar o cabelo. No meio do salão, a biba anuncia: "- Nossa, você está ficando careca, hein?!".

Depois de muita promessa para Santo Antônio, você se cansa de esperar o milagre dos céus e resolve fazer um despacho forte na encruzilhada. A pessoa amada passa na garupa da moto do seu melho amigo bem na hora que você ia acender a vela preta.

Num dia de solidão e carência, você decide contratar "Natasha, gata safada, 18 aninhos, faz td". Quando a campainha toca, surpresa: é sua irmã.

O dia amanhece ensolarado, você põe aquela roupinha de praia e segue para o mar. Cai uma tempestade e venta forte. Só lhe resta virar oferenda.


Não desista. Podia ser pior!

sexta-feira, 10 de junho de 2011

Um curta para longas conversas

Há alguns dias venho buscando alguma coisa para dividir aqui com vocês. Pensei em escrever sobre a escolha entre dois caminhos, ou, quem sabe, refletir um pouco sobre a correria do dia a dia. Isso, aliás, não chega a ser nenhuma novidade para mim - que até o fim de junho, devo passar às vezes até 12 ou 13 horas no serviço. Mas nem um tema, nem outro. Resolvi escrever sobre aqueles dias em que não nos enxergamos e recorremos aos olhos dos outros para ver o mundo.

A ideia surgiu ontem, quando recebi o link para o curta-metragem "Eu não quero voltar sozinho", de Daniel Ribeiro. É pequeno - pouco mais que 17 minutos -, mas traz uma mensagem bonita; a história de três adolescentes que estudam juntos. Um deles, cego, precisa da ajuda da melhor amiga para se encontrar no mundo. Ela, uma garota tímida, parece ver no amigo uma espécie de âncora para as próprias inseguranças. E eis que surge um terceiro elemento, um aluno novato, que soma à dupla um viés diferente... a descoberta do amor.

Seria mais uma história de amor, de tantas outras que já vi no cinema e em novelas, se o curta não abordasse, com uma singeleza singular, a descoberta de sentimentos entre dois garotos. E antes que alguém aí do outro lado se sinta ofendido ou ache que estou aqui fazendo alguma apologia, explico. Não vi nessa história a beleza por se tratar de um amor entre iguais. Aliás, passo longe da polêmica. Mas gosto de histórias bem contadas, de ser espectador de tramas factíveis, dessas que a gente vê por aí - entre meninos, meninas, velhinhos. Histórias de amor!

Me emociona a indagação de Leonardo, o menino cego da trama em questão, à colega. "- Eu sou bonito? Você acha que as pessoas me consideram uma pessoa bonita?". Quantas vezes já me fiz essa pergunta. E quantas vezes, posso apostar, pelo menos um de vocês, que passam por aqui, também já não se indagaram de igual forma? Em comum, temos algo: nós nos enxergamos. Nos vemos nos espelhos, nos reflexos de vidros escuros. Leonardo não. E mesmo nos enxergando, nos conhecendo (e reconhecendo) em cor, altura, textura, tantas vezes não nos vemos como somos. Ou achamos que são os outros que não nos veem.

"Eu não quero voltar sozinho" é, mais que um curta-metragem sobre dois meninos e uma menina, um retrato da cegueira da gente. Dos momentos em que surge a paranoia, em que buscamos braços que nos guiem e, no vazio, perdemos a noção do espaço. Um bonito relato sobre a importância da amizade. Sobre como ganhar a confiança de alguém sem pedi-la. Uma paráfrase de gente de verdade, com "pele branquinha, cabelo todo enroladinho, olhão". Ou, talvez, de pessoas sem nenhum desses predicados, mas um coração disposto a sentir e receber carinho.

No fim das contas, ninguém quer, mesmo, voltar sozinho para casa.

quarta-feira, 8 de junho de 2011

Tragam a camisa de força!

Bipolaridade é a palavra do momento. Como um bálsamo para as dores da alma, ela tira pesos dos ombros pecadores e os coloca no patamar de sofredores - pobres vítimas do destino. Ultimamente, noto que essa paroxítona vem sendo lançada como tapume para os mais diversos problemas estruturais dos homens; cabe do mau humor matinal aos ímpetos de agressividade.

Acordo num dia de sol, brisa leve, pássaros nas nuvens. Humor nas alturas, bom dia desejado aos porteiros, zeladores e até aos cães nas ruas. Em questão de minutos, um carro passa sobre uma poça, suja minha calça. Zango. "- Bipolar!", apontam os demais. Não há outro diagnóstico - nem mesmo um destempero pontual.

Ficou fácil esconder os próprios defeitos usando a bipolaridade como desculpa. Um dia de introspecção, se seguido de euforia por uma boa notícia que chegou de repente, pode denotar distúrbio de comportamento. Do contrário, se a luz dos olhos se apagam por algum motivo breve, sempre haverá quem, sem a menor proximidade, cochiche para um terceiro sobre "as duas caras de fulano".

Ficou tão fácil taxar os outros de bipolares, que às vezes me acho bipolar por pensar demais. Ser normal, hoje em dia, é manter uma só linha de raciocínio. É sorrir do amanhecer ao anoitecer, mesmo guardando mágoas e tristezas no fundo da alma. Não se pode mais ter algumas horas de silêncio, muito menos dar-se o luxo de uma autoavaliação que exija distância de outras pessoas, para pensar e respirar melhor. Quem faz isso... ah, é bipolar!

Estamos fadados a uma alegria contagiante, excessivamente expressiva. Picos de raiva, rompantes de insatisfação, de "desabafar consigo próprio" devem ser polidos, controlados ao máximo. Os "normais" são céticos, secos, austeros. São lineares e desconhecem a aplicação da expressão "ou 8, ou 80". Quero fazer parte desse grupo? Não. Prefiro minha naturalidade e a livre expressão que me aproxima das camisas de força.

domingo, 5 de junho de 2011

Belém, belém...

Tempos estranhos esses de internet para todos os lados. Não sei em que parte do filme da vida eu dormi, mas de repente estamos, todos nós, reféns dessa tal de banda larga. Esqueceu-se a época dos telegramas, das cartas endereçadas, dos envios via Correios. Ficou para trás aquele friozinho na barriga que levava duas, três semanas, até que a resposta a uma carta de amor chegasse.

Evoluímos ou retrocedemos? Não sei essa resposta. Sou de uma época - não muito remota - em que os melhores amigos estavam por perto. Nos telefonávamos todos os dias, às vezes até mesmo sem assunto. Fato era que a linha telefônica era o meio que encurtava as distâncias, mesmo quando as tarifas eram exorbitantes. Depois veio a internet discada, o ICQ, o mIRC. Velhos tempos.

Aliás, ICQ ainda existe? mIRC acho que não mais. Aos mais novos, explico: eram sistemas rudimentares, mas que tinham o mesmo princípio das salas de chat (também empoeiradas na era do imediatismo) e do Messenger. Só que, ao invés de fotos, trocávamos números. Às vezes falávamos com pessoas de longe, que nem conhecíamos, por meses. E tudo isso, sem conhecer o rosto de quem estava do outro lado da tela, porque também não havia scanner ou câmeras digitais. A imaginação era o elo entre a realidade e a fantasia que criávamos.

Hoje essa fantasia, esse "criar o ser ideal" já não existe. A troca de afinidades e de imagens é instantânea. Se não agradou, um "block" resolve tudo. E que venha o próximo perfil! Estamos conectados, querendo ou não, 24 horas por dia. Não bastava o MSN, o Twitter, o Facebook e tantas outras redes, veio também o 3G, a banda larga mobile. Hoje, você não faz mais amigos. Você adiciona. Os laços não se criam pela convivência, pelas afinidades dia após dia, e sim pelos "amigos em comum" e pelas aparências - nem sempre fiéis - que se põe nos perfis on-line.

Nesse contexto cibernético, cheio de abreviações e caracteres que traduzem sentimentos e feições, até mesmo o antigo "ficar de mal" mudou. Quando eu era criança e brigava com algum coleguinha, era comum dizermos: "- Belém, belém, nunca mais eu 'tô' de bem". E assim era dada a pausa na amizade. Por dois, três dias. Não durava mais que isso, em geral. Chegava a ser engraçado, confesso.

Hoje a história é outra. Se fulano diz coisas com as quais não concordo, "block" nele. Me irritou com muitas mensagens repetidas? Deixo de seguir. Se a amizade não está mais tão interessante, basta "parecer invisível" para não dar motivos para o outro puxar assunto. Tudo se resume a ações frias, automáticas. Um clique e fim de papo.

Acho que estou envelhecendo. Então, antes que pareça um ser apocalíptico, daquele que deseja o retorno dos mimeógrafos, do papel almaço e dos telegramas fonados, como se o passado fosse mais saboroso do que é o hoje, é melhor ficar offline. T+, blz?

sexta-feira, 3 de junho de 2011

Risco de queimadura

Começa com um calor no peito, um brilho diferente nos olhos, um pensamento que teima em ser pensado. Vem o suor nas mãos, uma vaidade súbita, aquele frio na barriga esperando sinais de fumaça - às vezes, torpedos, e-mails, um "cutuque" no Facebook. Pimba, é paixão!

Existindo desde que o mundo é mundo, essa tal de paixão é capaz de nos cegar. Seja quando nos apaixonamos por alguém, seja quando o encantamento se dá por um ideal. Os sintomas se repetem e, tomados de forte arroubo, defendemos o objeto idolatrado desmedidamente. Cegueira traiçoeira, nos venda os olhos com um trapo que só nos deixa um facho de luz. Justamente aquela luz quente, que aquece o coração.

Os apaixonados, ah, os apaixonados... não admitem críticas a qualquer coisa que esteja próxima de seu altar. Fagulhas incendeiam campos outrora tranquilos, pecadores se transformam em santos inveterados. Não os culpem, eles não conseguem avaliar a dimensão de seus atos. Tomados de sentimento, é como se o corpo se prolongasse para além dos limites, como se o outro - o ser amado - fosse também um pedaço seu. Conhecem e admitem, tão somente, o que sentem - o que os conquista, encanta e transforma.

Pelos caminhos tortos da vida, já conheci muitos tipos de apaixonados. Há aqueles que ouvem músicas e sentem os versos como se fossem escritos para si, que ficam aflitos à espera de um telefonema, que capricham no perfume e ficam indecisos com a roupa para "aquele" encontro. Também já vi paixões devastadoras - que estragam amizades, que rompem os limites do respeito, do diálogo, da tolerância. Em comum, a veneração desmedida, o não ver (e não querer ver) fissuras em tetos de vidro.

Paixão é coisa boa, não dá pra viver sem. Mas como a cólera, é precisa ser freada. Por mais difícil que seja, requer rédeas e freios. Pulso firme e racionalidade. Como fogo em pneus, ela atinge ápices, queima, deixa rastro que dá pra ver de longe. Mas é inevitável: passado algum tempo, a paixão vai enfraquecendo, a fumaça rareando, e ela cessa. Em seu lugar, ficam as cinzas.

quinta-feira, 2 de junho de 2011

Espírito de Guerra

O dia prometia ser mais um, de tantos outros, com notícias amenas e pouco trabalho. Previstas, estavam as mudanças no trânsito da cidade vizinha e um registro de mais um protesto de estudantes em frente à sede do governo. Igual a tantos outros, com muitos alunos, palavras de ordem, e nenhum resultado. Nada demais.

Bem queria que a promessa se cumprisse, mas não foi o que se deu. Durante mais de sete horas, ouvi palavras de ordem. Respirei fumaça preta, advinda da queima de pneus. Narrei um confronto (inenarrável) entre policiais munidos de escudos, cacetetes e gases de dispersão - e estudantes, que a seu lado tinham bandeiras, faixas, pedras e paus.

A cidade virou uma verdadeira praça de guerra, e fui testemunha disso. Mas não só testemunhei: descrevi o que via para uma infinidade de outras pessoas. Busca desenfreada pela informação mais isenta, imparcial. Apesar da adrenalina, nessas horas a emoção tem que ser separada da razão. Vi gente caindo no asfalto, corri para ter o ângulo da melhor foto. Lamentei (profundamente) pelas pessoas que ficaram presas no trânsito, que perderam consultas e oportunidades de emprego. Fiquei angustiado quando vi a tropa de choque da Polícia Militar caminhar, em passos certeiros, em direção a tantos adolescentes.

Ah... os adolescentes! Será que têm noção do que fazem? Me pergunto se de rostos cobertos e sujos de tinta são algum motivo de orgulho para os pais. Vou além, com a licença que vocês, leitores, me dão: fazer jingles, paródias, brincar de equilibrismo, de pular mochilas e comer marmita no meio do asfalto - fatos que presenciei neste 02 de junho - mudam a realidade de uma cidade? Duvido muito. Acrescento, por minha conta em risco, que certas atitudes acabam desmerecendo algo que deveria ser levado a sério e encarado com reverência.

E os policiais? Também fico com uma pulga atrás da orelha quando vejo agentes agitando cães farejadores contra a população que assiste, embasbacada, o entorno da sede do governo se transformar em trincheira. Me assusta presenciar um homem fardado mirando um tubo de spray de pimenta no rosto de populares. Não foi um jato aleatório. Havia objetivo certo! Passado o calor da hora, surgem as já cansadas e desgastadas palavras de repúdio: truculência, exagero, desmando. Mais do mesmo.

Vi Vitória se transformar em cenário de luta. De (fracas) ideologias pueris contra (fortes) braços, com cacetetes e escudos. As janelas do Palácio foram atingidas. Por quem? Não posso afirmar; fui barrado "por motivo de segurança" e não tive a permissão de cumprir meu papel. Mas sei que, de costas para a sede do governo, estavam os estudantes. Defronte, a tropa de choque, com suas balas de borracha ameaçadoras e impiedosas.

Não há ser humano - por bom que seja - que apóie quem lhe tira o direito de ir e vir. Que o obriga a ficar quatro, cinco, sete horas de pé num ônibus lotado. Não existe compaixão para com quem (não estou generalizando, sei que há pessoas sérias envolvidas), a despeito do bem comum, faz das avenidas da cidade um pátio de recreio, onde se brinca de lutinha, ao lado dos coleguinhas, achando graça em fazer a "dança do siri" quando vê uma câmera de televisão.

De igual modo, creio que não há ser humano - por crente que seja - que veja no enfrentamento policial algo "simples". Se era para conter a manifestação, porque ficaram por seis horas parados? Não havia sido registrado, até aquele momento, nenhum ato de violência. Nenhuma agressão. Bastou o enfrentamento para que os alvos passassem, de acusados de atrapalhar a fluidez da cidade a vítimas de um "governo impiedoso", como tacham algumas mentes mais afoitas e radicais.

Percebo que as instituições precisam se reinventar. Caso contrário, a linha tênue que separa manifestação de baderna, e segurança de violência, uma hora vai se romper. E, assim sendo, não vai adiantar trabalhar, confiar, nem nada mais. O espírito, que de santo nada tem, será condenado ao purgatório.