sábado, 30 de abril de 2011

Dúvidas, exclamações e reticências

Tenho dúvidas bem grandes guardadas em mim. É difícil admitir, mas não é todo dia que consigo deitar a cabeça sobre o travesseiro e dormir rápido, em paz, com a sensação de que o dia valeu a pena. Muitas vezes rolo na cama por uma, duas horas, e acabo pegando no sono durante uma das batalhas comigo mesmo. Questões pessoais, profissionais, angústias e medos que, tomara Deus, não sejam só meus.

Por exemplo: quem nunca pensou em jogar tudo pra cima? Um emprego modesto (porém seguro), um namoro que não traz mais felicidade e calor no peito, aquele curso de inglês chatérrimo que só faz rodar CDs de pronúncia duvidosa. Que atire a primeira pedra quem nunca quis bater a porta do quarto para não ouvir as reclamações da mãe, quem nunca fingiu prestar atenção no esporro dado pelo chefe, quem nunca xingou baixinho para desabafar.

Não é fácil observar ao redor o mundo em constante evolução e, um dia ou outro, se sentir à parte de tudo. Na adolescência, muitos amigos meus viajavam para Porto Seguro. Eu, para alcançar o sonho, tive que empenhar um cordão e um pingente de ouro na Caixa (aliás, foram a leilão). Passei a faculdade sonhando com uma grande formatura, com direito a familiares e festa. Não tive nem parentes na plateia, nem festa. Há cerca de três anos, fui convidado para um jantar e passei uma hora e meio em absoluto silêncio, apenas sorrindo, cordial, enquanto os outros convidados revelavam aventuras nos Estados Unidos, Europa, em ilhas caribenhas...

Nessas noites de insônia e autoanálise, me pergunto se estou mesmo no mundo que sempre idealizei. Afinal, nos sonhos, posso estar onde eu quiser (e assim sempre foi). Neles, não há tragédias nas estradas, não há reuniões enfadonhas. Não sonho com pessoas traiçoeiras, com vaidades desmedidas, tampouco com cobranças infundadas. Estranhamente, é difícil também acreditar que o mundo possa ter graça sem essas desventuras. Ficaria sem sal!

Há um ditado que diz que "a grama do vizinho sempre parece mais verde". Pode ser. Talvez meus amigos nem tenham se divertido tanto assim em Porto Seguro, talvez uma festa cheia de parentes nem seja assim tão importante e, torço (cá entre nós) para que aquele bando de viagens e aventuras ouvidas no jantar sejam exageros de gente que, como eu, não tinha modo melhor para passar o tempo diante de figuras tão rasas.

E é por aí, entre interrogações e exclamações, que vou caminhando pelo meu jardim. Ele pode não ter o gramado mais bonito das redondezas, mas pode ser que, para meus vizinhos, eu esteja no melhor dos bosques. E quando o cansaço vem, quando os pés doem de tantas pedras no trajeto, o melhor mesmo é buscar uma árvore que me sirva de sombra e me ofereça um pouco de frescor. Nessas horas, nada melhor que as reticências...

quinta-feira, 28 de abril de 2011

Nós, os capixabas

De nascimento, sou paraense. Poucos sabem, mas nasci em Belém, nos idos de 1985. Para complicar minha vida, minha certidão de nascimento é de São Luís (MA), o que sempre me deixa em dúvida sobre qual é minha naturalidade quando vou responder a algum questionário. Contudo, como desde os dois anos moro no Espírito Santo, não ouso dizer outra coisa senão capixaba. E mais: de Colatina!

E, cá para nós, ser capixaba tem lá suas peculiaridades. Não, não vou aqui reproduzir aqueles clichês chatíssimos - "capixaba não fala uai; fala iá / capixaba não estoura; 'poca' / capixaba não desce do ônibus; 'salta'". Bla bla bla, acho isso tudo uma chatice sem tamanho. Ser capixaba, de nascimento ou de coração, é mais que isso.

E esse "mais que isso" renderia muitas de observações. Mas nada me surpreende mais do que saber que, seja em que canto do mundo for, você sempre encontrará alguém que tenha um pézinho no Espírito Santo. Teve tsunami no Japão? Tem capixaba lá. Olimpíadas na China? Capixaba indo aos estádios. Terremoto no Chile? Ah, pode esperar, logo logo tem alguém chegando emocionado ao Aeroporto Eurico Salles. E gente muito querida minha certamente há de acrescentar: "e de Cachoeiro de Itapemirim", que, digamos, é uma categoria à parte dos nascidos na terra da moqueca e do peroá frito.

É empírico: tem capixaba em todo rincão desta Terra. Ô povo pra gostar de se espalhar, né? A última façanha, descoberta pelo super Fábio Botacin, é de que no chamado "evento do século" - nada mais, nada menos que o casamento do príncipe Willian -, um dos seguranças é... bingo! CA-PI-XA-BA. Meu Deus, onde isso vai parar?!

Segundo apuração do portal e-Band, Márcio Pampolini, de 36 anos, é responsável por abrir e zelar, dia após dia, da Abadia de Westminster, palco do enlace real britânico. O capixaba foi morar em Londres em 1998, passou uma temporada nos Emirados Árabes e hoje tem cidadania britânica. "Fachettoides" apurou (salve, Google!) que ele nasceu em Montanha, no norte do Estado, e está namorando.

Se engana quem acha que Pampolini será mero coadjuvante na cerimônia da realeza. Olhem só o que ele relatou ao e-Band: "
Trabalharei junto com os oficiais, numa procura intensa de objetos estranhos, armas de fogo e até explosivos. Depois do sinal verde, outras pessoas autorizadas poderão entrar com segurança". Além disso, Márcio vai cuidar de uma das rotas de fuga da igreja e da entrada das pessoas diretamente responsáveis pelo casamento do herdeiro do trono.

Ou seja, se algo der errado, a culpa pode ser de um capixaba!

quarta-feira, 27 de abril de 2011

Pequenas singelezas

Chuva batendo na janela, cheiro de terra molhada, silêncio lá fora. Nos dias de sol, nuvens bem raras, brisa leve no rosto e MPB tocando, gostosa, no fone de ouvido. Na primavera, margaridas e gérberas. Da lua cheia à minguante, quatro semanas de olhos no céu, à procura de constelações e universos longínquos. Pés no chão.

Todos nós temos nosso cenário de paraíso. A sós ou acompanhados, criamos nossas fantasias, nossos sonhos - e, graças a Deus, muitos deles conseguimos realizar. Não importa se o idealizado é um encontro à beira-mar ou um simples balançar na gangorra de um parque. Se o sonho é grande ou pequeno, rico ou simplório, tanto faz. No fundo da alma, naquela conversa íntima que só conseguimos ter com nossa própria consciência, todos guardamos quimeras.

Que bom que a vida é assim! Não seria possível respirar num mundo que só vibrasse trabalho. Não haveria felicidade em dias que só fossem feitos de fatos irreparáveis, concretos. Impossível acreditar que aqueles que só desejam o que lhes é distante saibam quão gostoso é ser simples. A vida ganha mais cor quando a gente se permite flanar - sem cobranças, sem tanta seriedade.

Depois de um dia de trabalho, uma ligação especial. Durante uma viagem, um SMS de saudade declarada. Após uma forte tempestade, difícil não se comover com um pijama quentinho, dobrado sobre a cama. Para os pais, o sorriso de uma criança. Para as crianças, um pirulito, uma barra de chocolate, um abraço demorado e terno. Encarar a simplicidade é uma arte.

Mais que isso, viver de modo simples e sem tanto rigor se tornou desafio. Somos tão cobrados pela perfeição, e nos cobramos tanto por superação de metas (às vezes psicológicas, porque estamos quase sempre querendo nos convencer que somos bons), que às vezes deixamos de enxergar o óbvio: viver (bem) não requer tanto esforço!

Coisas que dão preguiça

[] Barulho de chuva logo de manhã
[] Palestra com uso de PowerPoint
[] Aula de faculdade com data-show, com luzes apagadas
[] Gente que faz muitas perguntas
[] Ambientalistas
[] Viajar de ônibus (dependendo da estrada, dá é medo)
[] Levantar da cama na segunda-feira lembrando da academia
[] Ir ao supermercado no sábado à tarde
[] Enxugar a pia após lavar louças
[] Cortar unha do pé
[] Explicar o capítulo anterior da novela para aquela tia ranzinza
[] Argumentar com xiitas-donos-da-verdade
[] Encarar a esteira ergométrica por mais de 15 minutos
[] Entrar na C&A, na Renner ou na Riachuelo em dia de liquidação
[] Entrar na Lojas Americanas - seja que dia for!
[] Lavar o carro quando o dia está nublado (vai sujar mesmo...)
[] Arrumar a cama aos domingos
[] Conversar com cinéfilos. Os cults, então... bocejos!
[] Responder às pesquisas de opinião no meio da rua
[] Ler textos com mais de cinco parágrafos ou listas com mais de 20 itens

terça-feira, 26 de abril de 2011

Vida pré-moldada

"Quem disse que os filhos são felizes vivendo os nossos sonhos?". A indagação fechou o capítulo desta terça-feira da série Divã, protagonizada pela brilhante Lília Cabral na TV Globo. Nesse último capítulo, abordou a diferença de idade entre pessoas que se desejam, e como terceiros enxergam essas histórias "incoerentes". Não vou entrar nos méritos da sinopse, mas aviso logo: as angústias de Mercedes - a personagem de Lília na série -, me fizeram pensar um pouco sobre a forma com que enxergamos a vida e os relacionamentos.

A grosso modo, sonhamos com pessoas perfeitas. A mim, se perguntassem, responderia de pronto: quero alguém com, no mínimo, escolaridade superior, uma boa colocação no mercado, estatura média (que eu não precise nem abaixar muito, nem ficar na ponta dos pés), sorriso bonito, e um perfume marcante. Mas daí a ficar esperando que cada pré-requisito se cumpra, vou padecer. Os básicos, pelo menos, preciso que alguém preencha! (e tá difícil, viu?!)

Temos, muitas vezes, os costume de imaginar a vida como se ela fosse uma obra já finalizada. Mocinho e mocinha se encontram, se apaixonam, superam algumas adversidades e são felizes no final, com casa bonita, cachorro no quintal e almoço de domingo. Não é bem assim! Pessoas de carne e osso, sem script decorado, têm que trabalhar, se irritam com os afazeres, recebem inúmeras contas no fim do mês. Além disso, na vida real não temos a legenda "alguns meses depois", para pularmos capítulos e irmos direto aos pontos interessantes da história.

A pergunta de Mercedes é válida: "quem disse que os filhos são felizes vivendo os nossos sonhos?". Algumas mães deveriam refletir sobre isso. Outras perguntas válidas, agora para nós, "os crescidos": quem disse que seremos felizes vivendo histórias escritas por outros? Que voz divina nos dita, ao amanhecer, se fomos relegados a meros coadjuvantes ou se ainda somos protagonistas dos nossos casos? Corremos contra o tempo, mas às vezes não encaramos o nosso tempo.

A vida, esse emaranhado de atropelos e surpresas, é cheia de ruas, desertos, estradas, luas, lágrimas e canções. Visto que não é uma casa pré-moldada, não dá pra escolher o modelo. Não dá pra comprar na imobiliária, com decoração, móveis novos e caixinha de correio no jardim de grama verde. Alugar, então, nem pensar! É preciso construir - e isso é bem trabalhoso...

segunda-feira, 25 de abril de 2011

Ônibus lotado

Quer conhecer o ser humano? Entre num ônibus lotado. Uma viagem de dez, quinze, trinta minutos pode se transformar na maior experiência antropológica da sua vida, desde que mantenha olhos - e ouvidos - atentos a tudo que se passa ao redor. Gente de todos os tamanhos, de todos os credos, com os mais variados aromas (nem sempre bons) e estilos (nem sempre admiráveis). Um desfile de corpos e conceitos em um latão movido a quatro rodas pelas ruas da cidade.

Enquanto o ônibus chacoalha, Martha de Lourdes se sacode. Gorda, seios fartos, ela decidiu sair de casa, antes das 5h30 da manhã, com uma pregadeira de margarida no cabelo crespo e grisalho. Quase 12 horas depois, lá está ela. A blusa de helanca verde denuncia as marcas de suor nos vincos da pele branca e cheia de sardas. Apesar de ser apenas segunda-feira, a diarista já aparenta cansaço, do alto dos seus 47 anos. Fala estridente e alto com o cobrador do ônibus. Pede que ele lhe devolva dez centavos de troco. "- É po chicrete da minha filha Ludimylla Karollynne", argumenta, em vão.

A duas cadeiras de Martha, Vinícius chora com a cabeça encostada na janela de vidro. A cidade passa veloz do outro lado, mas os pensamentos do rapaz estão estacionados em Leonardo. Após dois dias de namoro firme, o adolescente negro que quase se desmancha em lágrimas foi surpreendido pela ruptura de um amor que julgava eterno. Leonardo admitiu que, nas últimas 48 horas, só pensara em sexo fácil, mas que diante do romantismo do parceiro, iria atrás de "carne nova". Sozinho e abandonado, Vinícius cogita beber água rais tão logo chegue em casa - e seu ponto está próximo.

Uma curva acentuada na periferia faz o iPod de Milena cair no assoalho do ônibus. Ruiva, olhos expressivos e fortemente marcados por lápis preto, a auxiliar de escritório acabara de ganhar um aumento de salário. Às custas de uma noite com o chefe, é bem verdade, mas seguia para casa com o olhar confiante e a autoestima nas alturas. Com o primeiro salário reajustado já vislumbrava novos sapatos e uma boa compra no supermercado para ajudar nas despesas de casa. Antes da curva que lhe custou o iPod, Carol escutava Avril Lavigne e, como a canadense, queria descer da condução mandando um "What the Hell" para meio mundo.
Principalmente para o chefe, "- aquele velho asqueroso e impotente".

E assim se vão as largas avenidas, as passarelas, os morros e ruelas da cidade. Num fim de expediente, o ônibus lotado passa a ser o mundo de muita gente, independente do trajeto que faz. Neste amontoado de bravos desconhecidos, vão-se minutos de papo-cabeça numa cadeira de espuma rasgada, momentos de reflexão com olhos perdidos no horizonte ou até mesmo horas em profundo sono, numa entrega total e irreversível do corpo às horas de batente.

O lotação se traduz em ritmos tocados por celulares; são músicas
gospel, "proibidões" baixados da internet, hinos de times que denunciam fanáticos torcedores ou animados forrós embalados por malícia. No encoxa-encoxa do coletivo o povo fica mais quente - seja pela total falta de espaço, seja pelo calor do motor exigido à última marcha. Não se engane: um ônibus lotado é a mais exata medição da cara do país.

Caranguejo ciumento

Sou ciumento, assumo. E começo logo admitindo isso, antes que achem que sou manipulador, chantagista, coisa e tal. Mas não, são só ciúmes. Gosto das pessoas queridas perto de mim, e, se pudesse, telefonaria pelo menos uma vez ao dia para cada uma delas, nem que fosse só para perguntar "oi, tudo bem?" e me certificar de que estão todas em perfeito estado.

Distâncias me fatigam, incomodam. Tá, tá, talvez eu seja um pouco controlador, mas todos os horóscopos que já li dizem que é coisa do signo. Pausa para a piada: "- Vou ligar para a Gisele Bündchen perguntando se ela se sente como eu, afinal, nascemos no mesmo 20 de julho". Deixa pra lá... Bem, vamos ao que interessa: tenho ciúme dos meus amigos, das minhas amigas, primas, colegas... sinto necessidade de estar com os que quero bem. Conhecer suas manias, gostos, as pessoas de quem gostam e com quem convivem. Assim completo meu círculo feliz de relações bem-resolvidas.

No entanto, nem sempre os ciclos se completam. Rupturas fazem parte da vida, e algumas vezes convivi com gente que valorizei (e, portanto, senti ciúmes) mais do que deveria. Gente que não queria saber de laços fortes, duradouros. Ou que, simplesmente, não vê nessa minha mania algo que faça sentido, que lhe acrescente. Aí vem a velha frase, o clichê dos clichês: "o tempo é o melhor remédio". Pimba! O que um dia foi ciúme e carinho desmedido, vira quase esquecimento. Poeira num passado remoto ou lembrança poucas vezes rememorada. Às vezes dói, mas estou disposto a aprener a respeitar diferenças de comportamento.

Há pessoas que são como pedaços de mim. Consigo entendê-las pelo olhar, sinto uma energia estranha quando elas não estão bem, vibro com suas conquistas como se fossem minhas conquistas. Sinto como se minha alma fosse mais completa quando estou com meus amigos, e eles comigo. Deste modo, posso rir, reclamar, cantar desafinadamente, beber Ice até ficar tonto (três garrafas me bastam) e até dividir histórias que escondo de mim. É infalível: eles sempre sabem apreender tudo e me dar uma resposta sensata. Ou, simplesmente, participar da minha festa.


Na direção contrária, gosto de ser ouvinte. Talvez isso tenha me influenciado a ser jornalista. Gosto de ouvir histórias, pensar sobre elas. Vez ou outra, as respostas mais corretas só me vêm à cabeça horas depois. Creio que vocês me entenderão, afinal, todo mundo tem pelo menos uma pessoa especial a quem empresta ombros, ouvidos e sensatez nas horas precisas, sem se cobrar e sem cobrar nada por isso. Puro prazer.

E sabe o que é mais estranho? Esses amigos, meus irmãos de coração, estão todos longe de mim. A mesma distância que me incomoda, no caso deles, me conforta. A saudade avassaladora que sinto se transforma em alegria e vontade de fazer tudo-ao-mesmo-tempo-agora quando nos encontramos. Não há rodovia longínqua demais que nos separe, nem tempo sem contato que diminua nossa sintonia. A vida vira festa, as lamúrias se traduzem em sessões de análise, os amores e desamores são confidenciados, festejados ou esconjurado em terapia de grupo. Nos completamos.

Sou um ciumento confesso, mas de todas as manias que tenho, dessa não me desfaço. Gosto das pessoas de verdade, mergulho de cabeça e compro briga pelos que quero bem. Tenho ciúme quando percebo que suas divisas estão se distanciando das minhas, mas sou torcedor costumaz pelo sucesso das novas descobertas. Fico com o coração apertado a cada vez que um "novato" chega disputando espaço e, como o caranguejo que representa meu signo, me escondo no meu túnel de areia até estar certo da segurança no ambiente. Minhas puãs até podem ser afiadas, mas prefiro usar meus braços para longos e calorosos abraços.

sábado, 23 de abril de 2011

Teoria do Leque

Após uma decepção amorosa com direito a choro, rancor e resignação, Felipe fechou-se para o mundo. Nada de sorrisos, nada de música, não queria saber de festa. As cores neutras pareciam cair-lhe melhor no profundo luto pessoal em que havia mergulhado. De onde surgiram as juras de amor? Por que haviam lhe prometido um mundo, quando na verdade, só queriam deixá-lo no vazio? Seria ele novamente capaz de acreditar em alguém? Nunca encontrou respostas.

Sem amor, investia em si. Fez do umbigo a órbita e, nesse curto trajeto, eliminou possibilidades de sofrer. Isso significava, na prática, não arriscar seus sentimentos com novas tentativas de amar. Colecionava domingos em casa, beijos não dados e intenções rechaçadas. No mesmo ritmo, acumulava livros, apostilas, cursos e séries de TV assistidas à exaustão - tentativas de preencher seu mundo solitário e distante.

Certo dia Felipe enxergou, por entre as pilhas de processos penais sobre sua mesa de trabalho, a jovem Daniella. Como ele, uma aprendiz da vida, com dores, calos e incompreensões. Tinham no currículo uma lista de amores não-correspondidos e lágrimas derramadas. Há anos dividiam o mesmo ambiente de trabalho, mas não se conheciam.

Como Felipe, Dani
ella havia passado por uma decepção amorosa. Diferente dele, não queria desacreditar da vida e das pessoas - "não adianta se trancar em casa, porque ninguém vai bater à sua porta dizendo 'oi, sou a pessoa certa para você'", repetia ela, exaustivamente, entre um cigarro e outro (vício que carregava desde a adolescência), determinada a tirar o amigo do luto que mais parecia uma pesada concha onde se escondia.

Foi assim que Felipe foi apresentado à "Teoria do Leque", como apelidara. Segundo ela, a partir do momento em que o sujeito abre a porta para uma nova pessoa se aproximar, não está garantido que aquela será "a" pessoa. Mas, pouco a pouco, a casa vai se enchendo, novos convidados se aproximando, e numa dessas festas da vida (afinal, a existência precisa ser celebrada!) fatalmente vai esbarrar em alguém que mudará seu destino.

O "leque", segundo Daniella contava, só se abriria a partir do momento em que Felipe entendesse que, como o sucesso profissional, o êxito no amor só vem após certo esforço. Após tantos anos de luto, ele decidiu que era hora de tentar. Nada teria a perder.

Tomado de coragem, o rapaz trocou a pálida cor de anos dentro do escritório de advocacia pela vermelhidão da pele exposta ao sol do meio-dia (passou a usar a hora do almoço para apreciar o mar). As camisas de botão, antes pretas, cinzas, beges ou azuis-marinho, foram substituídas por polos das mais diferentes cores. Investiu num novo corte de cabelo, passou a sorrir com mais frequência. Comprou um tênis de corrida e uma raquete de frescobol. Estava decidido a se libertar do humor ranzinza do mal-amor cultivado.

No segundo mês de prática da tal teoria, Felipe estava visivelmente mais saudável. Não era difícil vê-lo assoviar pelas escadas ou abrir a porta do elevador para outros moradores. As visitas dos colegas de trabalho se tornavam mais frequentes a cada semana. Daniella, por sua vez, também parecia satisfeita. Liberta de velhos fantasmas (ou talvez menos apegada a eles), se abriu a novas experiências, como provar comidas orientais e caminhar pela orla fluminense após o expediente. Aproveitou e deixou o cigarro.

E por aí estão eles, Felipe e Daniella. Não sei dizer se o tal leque se abriu, se a vida dos dois se tornou uma grande festa - com direito a convidados, garçons e olhares trocados no apagar das luzes. Mas é preciso admitir; com leque ou sem leque, a vida merece ser celebrada e as velhas desilusões, esquecidas.

Confessionário

Todo mundo tem seus pequenos pecados. Fato. Por mais cândida e pura que seja a alma da pessoa, no fundo do baú da memória ela já terá tido inveja de uma coleguinha de sala. Talvez porque a rival era mais bonita, mais alta, mais rica. Mas, nos primórdios da infância, certamente pecou por ter desejado algo que não tinha (o meu pecado, nessa época, era invejar as borrachas com cheiro de tutti-frutti, que eram lançamento em 1992).

Pouca gente leva ao confessionário, mas tenho sérias desconfianças de que todo mundo, num dia de má Lua, quis o atropelamento daquela vizinha que escuta sertanejo todo domingo de manhã, com o rádio chiando no último volume. Ou que tenha desejado pela surdez do filho chorão e pirracento da prima do interior. Conheço gente até que, tamanha escuridão na alma, quis ver a sogra tetraplégica, muda, mumificada. Mas esse já foge da série dos "pequenos pecados", convenhamos.

Há os que comem compulsivamente, sem fome alguma. Aliás, esse grupo tem uma subcategoria interessante: os gatunos de docinhos e salgadinhos de festa (afinal, não basta comer, tem que ter um extra). Já ouvi falar, também, dos que choram miséria enquanto gastam todo o salário (e a cota do cheque especial) em lojas de grife, só para ter boas etiquetas no guarda-roupas abarrotado de peças. Não muito distante, certamente você já conheceu alguém que prefere ficar visitando colunas sociais on-line a atender o telefone do trabalho. É o mesmo sujeito que adora um livrinho de palavras-cruzadas para matar parte do expediente, enquanto os colegas se matam de trabalhar na mesa ao lado.

Nesse mundaréu de pecadores, já vi gente que adora pôr a função acima das relações interpessoais. São aqueles que mal recebem uma promoção e já assinam, em negrito nos e-mails, "fulano de tal, chefe de alguma coisa". Se você conhece um desses, duas dicas: 1) cuidado com sorrisinhos simpáticos demais, afagos ou elogios gratuitos. São falsos!; 2) lembre-se que tudo que sobe (e gaba-se) rápido demais, também cai fácil - às vezes derrubado pelo próprio orgulho.

Mas, voltando aos nossos pobres candidatos ao inferno, lembra daquele adolescente do seu condomínio, que vive com a aba do boné virada para trás, que anda balançando os braços e masca chicletes de boca aberta enquanto a bermuda denuncia metade da cueca Zorba? Ele pode até despertar a sua ira, ouriçar a sua irritação. Mas no fundo, no fundo, talvez seja só um pecador pueril, apegado às imagens, vídeos e pornochats que lhe despertam a recém-descoberta luxúria. Pensando bem, ele pode ser coisa bem pior... ultimamente, ando meio ressabiado com qualquer coisa! Mas disso vou falar em outra oportunidade.

ººº
Mas por que falar de pecado a esta altura do campeonato? Porque acabei de pecar. Trabalhei o dia inteiro, fui à praia caminhar, segui a dieta direitinho, com maçã verde no lanche e tudo mais. Mas não resisti à tentação: fui à cozinha, peguei uma barra de chocolate meio-amargo e me fartei. Em plena meia-noite da Sexta-Feira da Paixão. E aí, qual será minha penitência?

quinta-feira, 21 de abril de 2011

Nasci pra ser tio

Quem conheceu minha mãe, a explosiva e brilhante Eliana Dalva, costuma dizer que me pareço muito com ela. Esta é a primeira vez que falo de mamãe aqui neste espaço, mas podem se acostumar; ela será figurinha vez ou outra citada. Dela herdei a risada escancarada, os olhos amendoados, a facilidade para engordar (e também para emagrecer, quando quero), as mudanças repentinas de humor (ô!), a vontade de trabalhar, a língua ferina e às vezes traiçoeira. Só para citar algumas coisas - se tudo isso já não parecer bastante!

Parando para pensar um pouco mais, vejo que guardo em meus genes outras marcas fortes de quem me pôs no mundo. E são coisas que vão além da aparência ou do gestual. Mamãe não nasceu para ser mãe. E escrevo isso sem um pingo de dor, tristeza ou remorso, porque sei que é a verdade. E, de lá de onde ela me vê agora, tenho certeza que não reprovaria essa verdade revelada ao mundo.

Mamãe era uma mulher liberta de pequenas convenções. Infelizmente, não sou porta-voz de suas lembranças juvenis, porque elas nunca me foram confidenciadas. Mas por tudo que aprendi sobre ela, posso dizer, com todas as letras, que minha mãe nasceu com a vocação de ser, pura e simplesmente, a "Tia Nana" dos meus primos e primas.

A Tia Nana do puxa-puxa brilhante e açucarado que minhas primas tanto falam, e que só de ouvir falar, salivo de vontade. A tia que ensinava a falar palavrão enquanto as minhas tias - mães das minhas primas -, teimavam em rezar pela cartilha do correto bom costume. Pausa para uma constatação: criança não gosta de regra; criança gosta de espaço, de horizonte. Criança quer, sim, aprender. Mas quer aprender com prazer. E, deste modo, mamãe sabia ensinar.

Mamãe era a tia das paródias musicais, dos bombons permitidos em substituição às refeições, da não necessidade de tantos banhos. Com a Tia Nana, a casa se enchia de alegria; tinha música, tinha dança, tinha liberdade. Mamãe sabia dar cor às imaginações dos sobrinhos. Não vivi este período (porque depois que eu nasci, a Tia Nana teve tanto trabalho, que talvez tenha sorrido menos...), mas toda vez que ouço os relatos da primaiada, me encanto - e sinto vontade de ter sido sobrinho da minha própria mãe!

Mamãe não era a mais beatas das irmãs. Longe disso. Mas acreditava que Deus pode estar guardado dentro de cada um de nós. Que Ele mora no pensamento, na boa vontade, nos sentimentos mais puros do ser humano. Nisso me pareço com ela, apesar da criação católico-fervorosa que tive. Por outro lado, mamãe sabia despertar o ziza dentro das pessoas. Cá para nós, ela também tinha um diabinho aferrolhado, que quando inventava de se desprender, era capaz de nos fazer ajoelhar e rezar pela paz mundial.

Ter filhos deve ser tarefa muito complicada. Complicada e dolorida, ainda mais para alguém que, por mais que envelhecesse, encarcerava um espírito de juventude, um sopro de vitalidade que divergia das angustiantes tarefas da maternidade. Tia Nana era assim. Não estou aqui dizendo que mamãe tenha cumprido mal seu papel. Não é isso. Mas acho que o papel de tia lhe caía melhor.

É por essas, e outras, que aplaudo minhas semelhanças com a mamãe. Como ela, me sinto um espírito livre; quero abraçar o mundo, quero falar outras línguas, quero ir longe e voltar com a certeza de que tenho com quem dividir histórias. Seguirei o rastro da Estrela Dalva quando encontrar um céu para formar minha constelação, quando ao meu lado reunir os melhores amigos para rir das besteiras da juventude. Quero pegar meus sobrinhos no colo, sentar no chão e brincar com eles. Quero vê-los riscando as primeiras letras no papel e - vez ou outra - deixá-los rabiscar a casa, mesmo que depois, reclamando da vida, eu tenha que esfregar as paredes com bucha e sabão.

Desejo, do fundo do meu coração, ser como a mamãe. Quero não ter o compromisso de curar dores de barriga após oferecer chocolate (ou puxa-puxa) às crianças. Não quero ter que me preocupar com o horário da escola dos pequenos se, num belo dia, decidir que vamos comer pipoca à meia-noite. Quero ajudar a ensinar, sugerir livros, boas viagens. Quero entoar cantigas, fazer paródias, rir de pequenas travessuras sendo cúmplice de todas elas - afinal, não precisarei ser tão rigoroso. Quero viajar junto e me esbaldar com as crianças - mas tendo, à noite, a certeza do meu sono tranquilo, porque elas terão pai e mãe para colocá-las na cama.

Aos 54 anos, quero brindar minha vida, minha carreira, quero afagar as crianças crescidas da família. Quero olhar para minha juventude e suspirar de saudade e felicidade, enxergar nos sobrinhos os bons ensinamentos que dei e ver que, com as crianças, me mantive jovem de espírito. Por fim, não me perguntem: "e filhos, você não quer?". Sinceramente, não. Está aí mais uma - e talvez a mais íntima - das semelhanças com a mamãe: nasci pra ser tio. Simplesmente, e com todo carinho, o "Tio Dudu".


quarta-feira, 20 de abril de 2011

Preto e branco

Todos nós temos dias em preto e branco. Muito já li sobre estudos sobre os "sonhos em preto e branco". Especialistas sabem enumerar uma infinidade de motivos para diferenciar as pessoas que, à noite, sonham em cores ou não. Mas isso é papo para outra história.

O que me aflige, por muitas vezes, é quando os dias estão descoloridos. E acho que muita gente sabe do que estou falando; o dia perde a cor quando você acorda, de manhã, e percebe que as unhas cresceram, que ganhou mais cabelos brancos, que o despertador atrasou e que agora só lhe resta correr para não perder o ônibus. Tudo fica em preto e branco quando o coletivo chega, passa sobre uma poça e molha aquela única calça jeans que estava no guarda-roupa. Pior: é a sua preferida.

Dias sem cor trazem o desprazer dos quilos a mais. Você pode nem estar sem lembrando da última vez que visitou a balança, mas é nesses dias que aquela colega despeitada vai te olhar de cima em baixo e, com cinismo escapando pelo canto dos lábios, proferir a pior das maldições: "- engordou, hein?!". Ah... não há passarinhos, borboletas, aumento de salário ou adiantamento de férias que sejam capazes de espantar esse mau agouro. O dia fica cinza!

Nos dias em preto e branco, nem mesmo o mais desejado dos sonhos - um pique-nique no campo, uma viagem à Europa ou um cartão de crédito sem limite - terá o mesmo brilho. Se a sua opção for a última, então, é capaz de você chegar em casa e reprovar tudo aquilo que gastou. E tomar birra de cada peça, a ponto de nunca usá-las. Se estiver na Europa, certamente vai reclamar do frio (mesmo que, por anos, tenha sonhado em sentir a neve).

Quando a vida fica sem cor, a gente também fica pálido. O sorriso parece forçado, os olhos ficam opacos, as músicas preferidas irritam. Se o seu karma for o cabelo, então, prepare-se para lutar contra os fios, porque eles jamais estarão como você quer. Mas, um conselho: se esta for sua provação, fuja do Kolene ou do Yamasterol. Não torne o dia dos outros também um eterno preto e branco com aquele cheiro característico!

Para quem está seguindo firme numa dieta, dias em preto e branco são um convite irresistível àquela barra de chocolate meio-amargo que está no fundo do armário, implorando para ser devorada. Quem está com as contas no vermelho, em geral, corre para a primeira loja (mesmo que seja a C&A) só para saciar-se do desejo de consumir. Os casados olham para os lados, à procura de "carne nova" e os solteiros querem mais é beijar duas, três, quatro bocas... afinal, eles não pertencem a ninguém (e não têm nada a perder, costumam dizer). O preto e branco costuma ser uma rota inquestionável à fuga do que é comum e rotineiro.

O bom de toda essa história é que, assim como as nuvens pesadas desabam em tempestade e lavam o asfalto empoeirado dos dias quentes, o preto e branco da vida também tem fim. E quando essa onda passa... ah... o seu mundo, por menor que seja, passa a ser um universo colorido e explosivo!

segunda-feira, 18 de abril de 2011

Preciso me casar

"- Mamãe, preciso me casar!". Era assim, sem cerimônia alguma, e com a língua desenfreada, tropeçando nas sílabas, que Mariazinha anunciava sua decisão à progenitora. Fosse ela menos menina, talvez a mãe lhe desse algum fio de atenção. Mas não. Tinha apenas dez anos, e a euforia típica de criança logo passaria - pelo menos assim pensava a mãe, que se casara bem cedo, aos 16, por imposição do pai.

Dois anos mais tarde, Mariazinha retornou à mesma sala de estar, entre os sofás vermelhos e a mesa de centro de mogno, com o discurso mais uma vez ignorado. "- Preciso me casar, mamãe!". Já nesta idade, a pequena flertava com os rapagotes da escola. Tinha, era bem verdade, três "namorados" concomitantes. De Pedro, admirava os olhos; de Lucas, os cabelos ondulados; Joaquim, por sua vez, chamava sua atenção por ser o mais alto da turma, e também um ano mais velho.

Aos 15 anos, Mariazinha - ou "Mari", como a turma do colegial lhe apelidara - descobriu o prazer. De tanto ouvir as queixas da mãe, de que havia se casado muito cedo e que, por isso, havia "deixado escapar a chance de conhecer outros beijos, peles e suores" que não fossem os do marido, a adolescente se deixou seduzir por Paulo e com ele viveu sua primeira noite. Bem da verdade, Paulo é quem fora seduzido pelos cachos ruivos e pelo sorriso amplo que Maria tinha. Ela sabia como usar a beleza a seu favor. Mas no íntimo, guardava a sentença: "- Preciso me casar!".

Todo mês de maio era sagrado. Lá ia Mariazinha na catedral da cidade, nas paróquias mais concorridas, nos cerimoniais mais sofisticados, à procura das listas de nubentes. Fossem eles quem fossem, lá estaria ela: vestido de cetim rosa, laço na cabeça (às vezes substituído por uma longa trança), sapatos de salto alto e uma pequena bolsa de mão - para guardar o lenço que lhe enxugaria o rosto. Por 40 anos, não faltou a um casamento sequer das redondezas. Às vezes, emendava uma cerimônia à outra, com pequena pausa para retocar o rímel borrado do enlace anterior.

Dona Maria já era conhecida de todos os padres, presbíteros, cônegos e ministros do matrimônio. Sem ela entre os convidados, algumas noivas nem sequer entravam na igreja. Rodou a fama de ser "pé quente". "- Casamento com Dona Mariazinha é casamento para a vida toda!", garantiam as fuxiqueiras da diocese. Todas casadas. Menos Maria. Ela, aliás, já havia perdido as contas de quantos croquis desenhara, quantos quilômetros de véus arrastara, quantos buquês arremessara em bodas imaginárias. Já estava com 60 anos, mas não perdia a mania de tropeçar nas sílabas ao dizer, agora às colegas (a mãe havia falecido dez anos antes. Dizem que por desgosto de ter uma filha solteirona): "Preciso me casar!".

Num belo domingo, passeando pelo calçadão, apressada que só, Maria tropeçou em um rapaz que aparentava uns 30 anos. Tinha os cabelos pretos, olhos cor de jabuticaba, sobrancelhas cerradas como uma nuvem prestes a desabar em tempestade. Corpo musculoso, tez morena, voz grave e firme. Trocaram um breve olhar, logo depois telefones, e passaram a se falar.

"- Que bobeira! Pode ser meu filho", repetia ela, para tentar convencer-se de que o acelerar do coração nada mais era que a arritmia corriqueira. Mas não era o bastante. Bastaram dez dias; Maria estava entregue à mais avassaladora paixão. Nos braços do amado, não havia tempo, não havia rugas, não havia estrias em seu corpo que lhe fizessem recordar os anos passados. Eram ele e ela. Só os dois. Amantes, bocas ávidas por beijos longos e corpos que pareciam sedentos um do outro. Não havia a diferença de idade nem de ritmo. Nem da arritmia cardíaca ela se lembrava mais.

Maria abandonou as cores sóbrias, passou a frequentar o salão de beleza dia sim, dia não. No fundo da alma, palpitava a certeza "- Agora vou me casar". E essa sensação se repetiu, dia após dia, nos dez anos seguintes. No aniversário de 70 anos, Maria ganhou um anel de brilhantes do amado. Eram exatos dez diamantes - um para cada ano de convivência. E ali, aos pés da cama, num amanhecer de sábado em primavera, finalmente Maria ouviu a frase que tanto ecoou em sua mente por seis décadas. "Quer se casar comigo?"

"- É um sonho!", sussurrou ela. As mãos, trêmulas em decorrência do Parkinson, fraquejaram. A voz falhou. Os olhos lacrimejaram e parecia faltar-lhe o ar para emitir um monossílabo que fosse. Em fração de segundos, Maria viu-se Mariazinha, adentrando a catedral com um longo véu branco. Como em todos os sonhos de outrora, o vestido com longa cauda lhe marcaria o derrière e deixaria parte das pernas à mostra. Nas mãos, um buquê de tulipas e flores campestres. Tudo isso relampagueava em sua cabeça enquanto os pulmões buscavam um mísero feixe de ar que lhe permitisse dizer o "sim" de sua vida.

Viu, ainda, os olhos de esperança do companheiro se transformando em feição de preocupação. Ela sabia bem o porquê. Já havia sentido todos aqueles sintomas, como se o ar sumisse e tudo ao seu redor estivesse desfragmentando. Maria foi se deitando, e com o anel de casamento em mãos, recostou-se sobre os travesseiros, deu um breve e sincero sorriso, e com toda gratidão que lhe inundava o espírito, usou a força que lhe restava para declinar. "Me sinto honrada, mas não posso me casar". E se foi.

domingo, 17 de abril de 2011

Quiosques, picolés e alegrias

Minha praia não tem quiosques. Não tem árvores frondosas, não tem carangueijos ou siris correndo sobre as cangas estendidas na areia. Minha praia pouca sombra tem. E mesmo assim, só quando uma nuvem gigantesca passa desafiando o sol, embaçando os raios quentes que, no chão, fazem arder os pés da gente.

Minha praia não tem quiosques, mas tem muitos vendedores. Tem a "tia das saídas", com panos esvoaçantes, cheios de estampas - tem verde, tem vermelha, de arco-íris; tem de miçanga e até de onça rosa!. Lá também tem o tiozinho da cerveja, sempre sorridente, que trata os banhistas como velhos conhecidos e corre da gente antes que a conta feche (e o lucro seja menor). Minha praia tem crianças fazendo castelinhos, e nesses castelos de areia elas constroem seus contos imaginários. São pequenos príncipes e princesas que dispensam cetro e coroa, mas que significam toda uma majestade para mães e pais que, vez ou outra, têm que sair correndo para buscá-los no quebrar das ondas.

Meus domingos ensolarados não têm quiosques. Perco as vantagens de uma mesinha bem posta, de uma sombrinha que me livre do excesso de sol. Não tenho, também, um garçon amigo me chamando de freguês. E, quer saber? Nem me lembro que os quiosques não existem. Porque minha praia é feita de gente. De risadas gostosas, de picolés de abacate, de água morna com "correntes frias que gelam a gente", de pedacinhos de algas que parecem pequenas flores boiando. Minha praia tem luz, mesmo quando o sol se esconde.

No mar, eu me encontro. "Nasci para isso!", vivo repetindo. Assistir o ir-e-vir das ondas me acalma, e penso em todas as pessoas que vêm e que vão, as que foram e que ainda estão por vir na minha história. Não levo revistas para a minha praia. Livros, então, passam longe. Quero ir à praia para escrever histórias, para imaginar o que se passa na cabeça dos outros. Quero ler a vida enquanto ela está sendo escrita, e me surpreender com a criança que surge do nada com sua pá de areia - uma verdadeira ameaça para a canga vizinha!

Volto a dizer: minha praia tem luz. É a luz das amizades bem construídas, leves como areia, mas bem mais resistentes e firmes que os castelinhos infantis. Minha praia não tem quiosques, mas tem gente gostosa. Gente que ri com o espírito, que ali se despe da seriedade costumeira e que, assim como eu, quer viver a vida, pegar sol, dividir alegrias e carregar consigo um pouquinho do calor e da energia do sol.

Sou neófito nesta turma. Estou, a pouco tempo, resgatando o tempo perdido. Tempo de ter cor de gente saudável, de construir laços, expandir horizontes. Esta sim é minha praia!

sexta-feira, 15 de abril de 2011

Senhor Tempo

Ele nunca quis ser astronauta. De pequeno, não se lembra de ter sonhado com corridas de Fórmula 1, aventuras no faroeste ou de ter desejado ser artilheiro em partidas de futebol. Também não queria admitir, para si, que era só mais uma criança. Gostava dos colegas, mas se achava "muito maduro para brincadeiras tão bobas". Tinha vontade de sentar na última carteira da sala de aula para atirar bolinhas de papel contra a professora, mas, - "ah, que criancice!".

Desde cedo se cobrava resultados. 9,5 em uma prova era "nota vermelha". Não ganhar medalha de ouro ao fim do bimestre por ter todas as notas máximas seria, no mínimo, uma ferida profunda no ego (e provável motivo de chacota perante os colegas). Ao sair para a escola, encarava o trajeto como se caminhasse para uma grande missão, para sua empresa. Era, por dentro, um grande executivo. E queria crescer.

Na época em que poderia ter "aprendido" a beber, não bebeu. Preferiu ficar de fora das panelinhas dos garotos ávidos pela iniciação sexual. Não comprou o tênis All Star quando este era moda, tampouco se rendeu à febre dos tamagoshis. Queria comprar revistas, coleções de livros, ouvir MPB e, vez ou outra, falar disso com naturalidade, como se fosse habituè do universo adulto.


Viu os anos passarem como se já vivesse o futuro. E chegou onde queria. Cresceu. Cresceu e com a idade vieram as contas de telefone fixo, celular, farmácia, plano de saúde, cursos de idiomas, vale-transporte e supermercado. Teve que se habituar a bater cartão, a responder pelas faltas, a ser cobrado e a controlar as palavras que lhe vinham à mente quando contrariado. Teve que aprender a manusear a pinça para arrancar do couro cabeludo os primeiros cabelos brancos.

Se, quando criança, podia bater nos coleguinhas certo da impunidade escolar, o mesmo já não fazia. Perdeu o tempo do futebol, das aulas de educação física e das brincadeiras de pique-pega, e agora teria que responder por isso: o corpo não tinha o preparo necessário nem sequer para correr atrás do ônibus. Tinha responsabilidades de gente grande, mas no fundo, amargava a dor de ter se negado a ser menino (só que jamais admitiria essa fraqueza).

Já beirava os 30 anos, quando, enfim, parou e olhou o presente. Crianças correndo na praia, bolas de frescobol arremessadas distante, areia jogada para cima por passos velozes entre as ondas e castelinhos desfeitos pela maré faminta. Vendedores de picolé gritando entre as pessoas, cheiro de Sundown sendo espalhado pelo vento, surfistas com o rosto coberto por protetor solar, pessoas se atirando no mar sem pudores, só por prazer. No horizonte, naquela faixa de areia, enxergava um passado que nunca viveu.

Naquela praia, diante de um oceano de lembranças e desejos reconhecidos, começou do zero. Afinal, ainda havia tempo de se tornar astronauta...


quinta-feira, 14 de abril de 2011

Imparcialidade Urgente

Nesta quinta-feira, uma multidão bradou contra o governo do Espírito Santo, nas redes sociais, por causa do encerramento do contrato com o projeto "Vida Urgente", da Fundação Thiago Gonzaga. O programa, há 14 anos, é um dos atores que promovem a conscientização de jovens motoristas sobre os riscos da combinação álcool + direção.

Não desmereço o projeto e reconheço seus méritos, mas me parece estranho que uma organização nacional, do tamanho que é esta, dependa tão somente de recursos públicos. Conforme registrado em matéria do Gazeta Online, o Departamento Estadual de Trânsito (Detran-ES) afirmou que o convênio com a Fundação era da ordem de R$ 1 milhão anuais. Diz o governo, ainda, que "todas as campanhas educativas e programas em curso estão sendo revistos". Isso justificaria a não renovação do contrato, ao término do prazo já estabelecido.

Me pergunto: um milhão de reais por ano não é o suficiente para dar conta das despesas da entidade, ainda mais sendo ela uma árdua defensora do voluntariado? Não entendo de finanças, mas em meu humilde orçamento doméstico, sempre deixo uma "folga" no fim do mês para caso de imprevistos ou pormenores. O "Vida Urgente" teria pecado por este lado, talvez dando como certa uma renovação que não aconteceu? O projeto não tinha um "colchão", como se tem costumado dizer nos bastidores do governo? E os contatos com a iniciativa privada? Ficam algumas perguntas.

Me causou espanto a ampla movimentação em torno da causa durante todo o dia. A começar pelo e-mail propagado pela Fundação Thiago Gonzaga, ao fim da manhã, jogando no colo do governo a responsabilidade pelo encerramento das atividades no Estado. Pior; o tom de verdadeira comoção que internautas imprimiram aos seus tweets, criando, inclusive, a hashtag #FicaVidaUrgenteES, sem ao menos conhecer a versão do Detran-ES.

O órgão estadual, aliás, pecou (a meu ver, óbvio) por só se pronunciar à noite. Poderia ter divulgado sua versão do fato um pouco mais cedo, atenuando a enxurrada de comentários de repúdio. Seria mais esperto e mais "dialogado" - já que a atual gestão gosta tanto de pregar o diálogo como sua principal marca. Outro "pecado" do gabinete foi não aproveitar e dizer que espécie de revisão é essa que está fazendo nos projetos e campanhas educativas. Outros cortes virão?

Mas, como bem lembrou a nota do Detran-ES, o projeto "poderá continuar suas atividades no Espírito Santo a exemplo do que já ocorre em outros Estados do País". Com outras pernas.

terça-feira, 12 de abril de 2011

Você veste o que você não é

Há um ditado que diz "você é o que você come". Em termos de saúde, ainda vá lá, mas acho que similares não se aplicam. Por exemplo, não se pode dizer "você é o que você veste". Quantos doutores, de toga, andam por aí, por ruas escuras e escritórios-fantasmas, aliciando secretárias, comprando assessores, vendendo verdades? Da mesma forma, quantos "joões-ninguém" você conhece que, por mais simplórias que sejam suas Havaianas e mais puídos seus calções, lutam dia após dia pelos míseros R$ 545 que lhes devem, a fim de sustentar filhos, filhas e agregados?

A etiqueta não põe etiqueta. Digo, a marca da camisa que reluz na vitrine do shopping jamais dará ao seu comprador o mesmo brilho, a mesma pompa, se ele também não reluzir por dentro, na hombridade, na humildade, na autocrítica. O homem é o que sente, o que aprende, o que guarda dentro de si. E isso, perdoe-me Deus, não se vê a olho nu. Há pessoas que são de cambraia de linho por fora, mas de chita por dentro. Há crianças que, na mais feliz das idades, sorriem com rostos de pano barato. Por dentro, no entanto, guardam corações de verdadeira seda chinesa, daquelas pintadas a mão.

O pior ser humano é aquele que sobe no pedestal das vaidades, das luzes direcionadas com lâmpadas claras e office design de arquiteto famoso para, no fim, ser comprado por mixaria - mesmo estando em banca de grife. Essas migalhas da compra não necessariamente devem ser interpretadas como dinheiro. Há quem se venda à própria ilusão de "ser importante", à presunção de "sou bom". O ego inflado de um status imaginário que lhe foi conferido pelo bacharelado ou por um cargo de confiança.

E, pobres mortais, enquanto se preocupam com o público que os observa do outro lado da vitrine, se esquecem de olhar para o próprio umbigo. Lá vivem as traças que lhes roem o caráter.

domingo, 10 de abril de 2011

"Rio" e um domingo comum

Para mim, domingos são dias que servem apenas para separar o alívio do sábado - um elixir pós-maratona de trabalho - da agonia de uma segunda-feira que dá início a mais cinco dias de correria. Geralmente, os domingos são dias mais mornos, sem tantas opções de programas ou vontade de badalar. Afinal, no dia seguinte é SE-GUN-DA!

Hoje não foi diferente. Dormi muito (do jeito que gosto, até às 14 horas), almocei tarde e fiquei de bobeira. Como não fez sol, nem à praia fui. Até que, lá pelas tantas, decidi ir ao cinema. Aposta certa: assistir "Rio", a tão comentada produção que tem o Rio de Janeiro como cenário e, segundo me consta, se transformou em febre na América do Norte.

O filme é vibrante. Muitas cores, araras, tucanos, pássaros gordos, magros, bons e maus. Humanos ecologicamente corretos, contrabandistas e muito carnaval. Sem entrar muito na história, já adianto que a sinopse não é lá grandes novidades. "Rio" repete a fórmula de "Procurando Nemo", onde o protagonista tem que enfrentar limitações próprias e faz váááários amigos. A produção de Carlos Saldanha é, de fato, uma exaltação ao Brasil e à beleza carioca. A reprodução virtual da praia de Copacabana, do Pão de Açúcar e do bondinho fascina e emociona. Além de adorar cinema, também adoro o Rio. Talvez daí venha minha empolgação pós-filme.

Bom, esta ida ao cinema acabou sendo diferente para mim. Gosto de assistir filmes acompanhado. Admito: me entrego às histórias e enquanto as imagens passam na telona, sou absorvido pelas emoções contadas. Preciso de alguém do lado para fazer comentários, para segurar na mão quando me assusto ou só mesmo para sair comigo do cinema relembrando os melhores momentos. Vez ou outra, me envolvo tanto com o que vejo que chego a interagir com os personagens, e só "desperto" à realidade após um "xiiii" de alguém da plateia. Vergonha para meus amigos, que sofrem ao meu lado, tendo que dar conta do filme e dos meus comentários. Tá, talvez eu seja meio exagerado...

Neste domingo fui sozinho ao cinema. Já que meus melhores amigos estão morando longe e os demais, creio eu, também ficam low frofiles aos domingos, não me restava outra alternativa. Aliás, restava: ficar em casa. Mas não era o que eu queria. Me enchi de coragem e decidi encarar "Rio" sem ninguém para dividir minhas opiniões. Guardei comigo a emoção ao ver os voos rasantes das ararinhas-azuis que protagonizam a história, me peguei, sozinho, balançando a perna ao ritmo da trilha sonora, ri sozinho de algumas passagens e, quando subiram os créditos, saí feliz, cantarolando, da sala de cinema.

Neste domingo, fui uma ótima companhia pra mim mesmo. Que bom!

sábado, 9 de abril de 2011

A ponte, a internet e os pensamentos

Sempre gostei de internet. Desde os tempos em que, para acessá-la, era preciso esperar a meia-noite para pagar pulso único. Época em que o "sinal" caía toda hora, em que era preciso esperar minutos por uma conexão - ouvindo aquele barulho que parecia um zunido enquanto o servidor era localizado pela linha discada.

Acompanhei o surgimento e a queda dos fotologs (eu tinha um, admito), a ascenção do Orkut. Demorei a me render ao Facebook e acho que, muito em breve, ele sepultará minha conta no Orkut - do qual só não me desfiz ainda porque, por lá, posso, de vez em quando, dar uma "olhada" na minha saudosa mãe, já que as últimas palavras dela, e também os últimos registros fotográficos - na neve italiana - ficaram por lá guardados.

A internet sempre funcionou para mim como uma janela para o que há de novo. Conheci pessoas importantes, "deletei" outras que já não tinham qualquer representatividade para mim, passei a seguir e a ser seguido por gente que nem sequer cumprimentei pessoalmente. O ambiente virtual, encantador por natureza, é também território que merece respeito e pede cuidado. Uma palavra mal escrita, um desabafo impensado, um rompante sincero. Tudo pode se tornar impiedoso, motivo de risos ou sérios puxões de orelha.

Mas pode, por que não?, ser este um local de reflexões, um "cantinho pra chamar de meu". Diferente da timeline do Twitter, onde pensamentos têm de ser reduzidos a 140 caracteres e notícias velozes correm à solta, busco uma janela de mão e contramão. Uma abertura que não signifique só aquela janela para o novo que citei ali em cima (de só olhar para fora e ver o que está acontecendo), mas, principalmente, uma janela por onde eu possa arejar, tirar (e atirar) o que fica guardado na sala empoeirada em que a alma se transforma de vez em quando. E - óbvio! - tentarei por à luz as alegrias de um pós-festa, das emoções que a vida oferece todos os dias, abrindo essa janela para o sol entrar e os visitantes observarem.

Aqui no "Fachettoides", posso não ser o Eduardo Fachetti jornalista, repórter, esbaforido por um furo de reportagem, por um lead quente. Este, aliás, terá de ser contido, quiçá amordaçado para não dar as caras no blog. Deixemos as notícias sérias para a hora do expediente, não é?!

Então, vamos ver no que isso vai dar...

PS * Sobre a foto: acho magnífica essa vista de Vitória, pegando parte da Terceira Ponte. E num momento em que crio um espaço de nova ligação com a internet (talvez até comigo), achei que a beleza da nossa Capital seria uma boa representação disso. Estou filosófico...